Saborear o Fogo

Estaria Camões apenas a falar de amor quando o descreveu como «fogo que arde sem se ver?» Talvez. Mas não é apenas o amor que é um fogo que arde sem se ver. Capsicum, jindungo, piripiri, pimenta-malagueta, chamemos-lhe o que nos soar melhor. O que ao nosso ouvido de forma mais eficaz descrever aquele fruto pequenino, provocador e atraente ao olhar, apelativo ao tacto – cuidado, nada de esfregar os olhos a seguir - e delicioso ao paladar. Verde, laranja, amarelo ou vermelho, a minha cor preferida. Cor apelativa, cor do desejo, cor da paixão, vermelho sangue, tom dos sentimentos intensos e que, com sorte, nos arrancam sorrisos. Delicioso para os amantes do fogo. O fogo que se sente e nos aquece internamente. Um fruto delicioso para os mais fortes. Há quem não o tolere, é verdade. A escala de Scoville pode ser bastante impiedosa. Sentimo-nos ousados mesmo nos patamares mais rasteirinhos dessa escala quando conseguimos subir a medo mais um degrau. Quando numa refeição conseguimos ser aqueles que não lacrimejam nem temem os pratos mais picantes. Quase como se nos orgulhássemos desse feito. Como se estivéssemos num patamar quase sobre-humano. Como se na nossa íris se notasse um exotismo quase irresistível. E como se as nossas papilas gustativas fossem escamosas como a pele de um dragão. Mas ninguém no seu perfeito juízo, a menos que tenha a alma forjada no fogo ou algo parecido, se aventuraria a subir a escada íngreme da referida escala de modo destemido. Uma escadaria que nos leva a um mar de labaredas.
O piripiri é essencial na minha cozinha. Dado o tempo que lá passo a magicar sobre o que fazer a seguir, ouso dizer até que é essencial na minha vida. Exorciza-nos a apatia, o desânimo, o frio. Sim, para mim um cházinho com pimenta de cayena faz maravilhas. Panaceia no tempo em que nos podíamos constipar fortemente sem que isso gerasse pânico, quer em nós, quer naqueles à nossa volta. Não digo que seja um elixir para a vida longa, mas sê-lo-á para uma existência mais intensa e animada. E porquê? Porque estas pimentinhas deliciosas e desafiantes dão vida a qualquer prato, exaltando os sabores das outras iguarias, e dão-nos vida a nós que as ingerimos. Fazem o sangue correr-nos nas veias como se tivesse pressa, e ao mesmo tempo gosto e entusiasmo. Como se não houvesse tempo a perder e o melhor da vida estivesse já ali à frente. Considero esta pequena maravilha um soro da verdade, como o chocolate ou o vinho. Recordamo-nos certamente do reboliço que foi a chegada de Vianne Rocher (Juliette Binoche) ao vilarejo francês que serviu de cenário ao filme Chocolate, de Lasse Hallström adaptado do livro de Joanne Harris. Ao abrir a controversa chocolataria em plena quaresma, uma das primeiras clientes é Armande (Judy Dench) que já sem qualquer gosto ou entusiasmo com a própria existência prova um chocolate quente com pimenta chili: A - «Chilli pepper in hot chocolate?»; V- «It will give you a lift.» O certo é que depois de provar essa bebida mágica, Armande sorri e revela alguns episódios mais ousados da sua juventude, em confidência à recém-conhecida Vianne. Aliem dois afrodisíacos numa chávena e o circo está montado. A visão sobre o mundo e o dia a dia será certamente bem mais colorida. No caso das pimentinhas malandras culpem ou agradeçam à capsaicina. Queima um bocadinho, é verdade, mas envolve-nos num abraço quente e reconfortante.

Ainda no cinema temos oportunidade de ver o picante a actuar, aliado ao vinho e outras iguarias, no filme A Festa de Babette, passado na Dinamarca no séc. XIX onde Babette, a magnífica chef parisiense do Café Anglais, com os seus dotes culinários excepcionais consegue quebrar a rigidez física e espiritual imposta no seio da comunidade religiosa onde estava inserida e fazer sobressair a emoção, a excitação e o entusiasmo aos comensais. Daí que eu insista que as bagas da família capsicum, o chocolate e o vinho, sejam uma espelho. Um espelho para o qual olhamos, mas ao invés de vermos o nosso reflexo físico, nos mostra a nossa essência. A nossa verdade. O que guardamos a sete chaves nas catacumbas da nossa alma.

Apenas um conselho final desta vossa amiga. Em caso de incêndio, jamais caiam na asneira de o tentarem apagar com água. Optem por água com açúcar, o que é habitualmente invulgar termos à mesa ao nosso lado. Apaguem com álcool e garanto-vos que se estavam ter um diálogo, este passará a ter um tom muito mais filosófico após a extinção do fogo. Ou recorram a algo lácteo. Batido, uma côdeazinha com manteiga, o que estiver ao vosso alcance. Mas nunca um copinho de água, que isso asseguro-vos que fará parte da lista de más decisões de vida que recordarão sempre com algum pesar.

Entretanto, caseiro ou de compra, não deixem o fogo fora da vossa cozinha. Incluam-no em cada iguaria. Sempre.

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