Um herói português

 

Foto extraída da net

        Ah, diz que a vida é isto! A soma dos dias e dos pequenos prazeres que nos resgatam. E o palato, seguramente, pode ser fonte de grandes deleites… Sempre me pareceu injusto que muitos vissem no cultivo das alegrias da mesa um substituto para a míngua de outras satisfações. Hoje sei que é um argumento de espíritos medíocres. Quem apenas conhece como prazeres os apetites carnais sente-se vexado quando outros trilham satisfeitos caminhos diversos de alegria, classificando-os como “sublimação”. Voltarei a este tema, aviso já os que por aqui passam que sou dada a tergiversações, dúvidas existenciais e elaboração de teorias filosóficas. Mas nunca me esqueço ao que venho. E venho aqui para louvar este delicioso pastel que me trouxe luz ao coração hoje.

    Desde que me converti a ser essencialmente plantbased desapareceu-me aquela tentação permanente para quem anda nas ruas de Lisboa. Ou andava, antes dos confinamentos. A tentação estava em cada esquina, sob a forma desses honrados estabelecimentos comerciais que são as pastelarias. Mil folhas, bolas de Berlim, palmiers recheados ou cobertos, pastéis de nata, croissants, queques, bolos de arroz, pães de Deus, montanhas de chocolate (tão feliz em criança quando me deixavam comer um destes, pois corria o rumor de que eram feitos dos restos dos outros bolos). E o bom bocado, um doce com um nome embaraçoso, diga-se. “Dê-me um bom bocado, se faz favor”. Como dizer isto sem sorrir ou deixar o pensamento voar para terrenos maliciosos? O certo é que todos este exército de açúcar espreita das montras  quando vamos tranquilos pela rua, pensando no jantar e na carta das finanças: “Vem” - dizem-nos, “a vida não é isso, as obrigações, os deveres, os dias sem história.”

         Ora, o meu bolo favorito sempre foi o pastel de natal. Desde logo, porque me suscita admiração histórica. Transporta em si a magia dos encontros de culturas. A sua origem é misteriosa, mas a massa folhada que o envolve, por exemplo, é creditada aos árabes. A canela com que o polvilhamos veio de longe, para lá dos mares que a nossa vista alcança. Só por ela já valeram a pena os enjoos e o escorbuto dos nossos marinheiros. Digo eu, que sou bem fraquinha na arte de marear. 

       O pastel de natal lui même parece ter sido inventado pelos monges dos Jerónimos. Imagino que para deleite pessoal. Mas depois, por alturas dos apertos decorrentes das revoluções liberais, os profissionais de Deus abriram uma loja em Belém. Sabem, qual é, não sabem? Foi tanto o sucesso que nunca mais fechou. 

O segredo da feitura dos pastéis monacais permanece por revelar.  Mas o que não falta em Lisboa são tentativas, umas melhor sucedidas do que outras, de encontrar a fórmula. Da capital do Império o pastel de nata seguiu para o mundo. Os japoneses têm uma versão e em Malaca o único resquício da presença lusa são mesmo as egg tarts. Os portugueses a adoçarem o mundo é uma ideia bonita. Diga-se que também deixámos os fios de ovos na Tailândia e o pão de ló em terras nipónicas.

Mas voltemos ao nosso protagonista. A fórmula estava fadada ao sucesso. Um bolo pequeno que se não temos cuidados se deixa comer em três ou mesmo duas dentadas. Uma espécie de vai ser tão bom, não foi? Mas sem amarguras no final. Porque, valha a verdade, já todos percebemos que um pastel não é suficiente. Por isso, nos pastéis de Belém dificilmente se encontra nacional ou estrangeiro que peça apenas um bolo. Meia dúzia, para início de conversa. Menos é apresentar-se para a autoflagelação.

            Diga-se que estes pastéis veganos não ficam atrás dos de nata genuína. Não sei que segredos e mistérios se escondem. O que ilustra estas singelas palavras, recebi-o ainda morno. Em casa, para onde me dirigi com a urgência da felicidade, pus-lhe um pouco de canela, um talvez inesperado toque tradicional. Dei-lhe uma primeira dentada. A massa folhada cedeu sem resistência, franqueando o caminho ao recheio. Por uns minutos, talvez breves, mas que pareceram longos, a vida bastou-se comigo e com ele, no ponto certo do açúcar. Nem a mais, o que se tornaria enjoativo. Nem a menos, deixando-nos pesarosos de nele nos determos detido. Como sucede com as pessoas que vamos encontrando pela vida, já repararam?

Comi um segundo, claro. Já vou entrando nos anos e sei que o pior pecado é persistirmos no desconhecimento das tentações a que devemos ceder. Sem pedir perdão. 



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