Sarapatel


A minha primeira experiência com comida goesa foi numa época em que ainda não existiam telemóveis (não, não foi durante as invasões napoleónicas …), no restaurante “Cantinho da paz” sito algures entre o Bairro Alto e São Bento, em Lisboa. Naquela época, senti-me como Mogli - o menino na selva, a quem estão a dar a provar iguarias e sabores diferentes daqueles a que está acostumado, pela primeira vez, muito embora já tivesse vinte anos de idade. Dentro desses sabores, fiquei com os bojés e com a bebinca na memória gustativa. Até hoje.

Desde essa época até à presente data, regressei por diversas vezes a restaurantes goeses e tive o privilégio de habitar muitíssimo próximo de um, o qual, por razões que desconheço, já fechou. Nesse mesmo restaurante, explorado por uma senhora de origem goesa casada com um tuga alentejano, comecei a provar algo que se chamava “chouriço de Goa”. A cura, segundo dizia a senhora, era portuguesa sendo o condimento goês. Escusado será dizer que a partir desse momento eu nunca mais coloquei em crise a possibilidade de um ser humano entrar em combustão instantânea pois, a dado momento comecei a sentir o meu couro cabeludo a incendiar-se como se o chouriço em questão tivesse sido temperado com napalm, mas seja como for, não consegui parar de o comer. Dizem que produtos com lactose acalmam o incêndio, mas no meu caso concreto, talvez por preconceito, usei, em alternativa, vinho rosê fresquinho o qual nada acalmou a não ser a minha sede de vinho rosê.

Por sua vez, em momento posterior, abriu um outro restaurante precisamente em frente à minha casa onde, para além de uma diversidade de comidas portuguesas ainda tinham sarapatel. Para quem não sabe, diversas iguarias preparadas com vísceras de porco, cabrito ou borrego o qual, a dado momento me fez sentir como uma lebre que vi, em tempos, e que tentava comer uma cebola brava. A lebre queria comer a dita cebola, mas cada vez que o fazia ficava com os olhos a arder. Em resposta ao ardor, esfregava os olhos com as patas piorando a situação, mas mesmo assim não conseguia parar de comer a cebola num seríssimo conflito de intenções. No meu caso, foi mais ou menos a mesma coisa.

Terminei ontem, no restaurante Cinnamon, na Parede, onde regressei ao dito conflito de intenções, pedindo um sarapatel que me soube pela vida, acompanhado de um rosê escatológico, com a sensação que cada garfada correspondia a um princípio do fim, mas mesmo assim, irresistível como sempre, qual adição proibida.

Nunca fui a Goa, mas sim, se tudo correr bem lá irei, não só pela comida mas por tudo o resto com a certeza que me irei comportar como a lebre que tenta comer a cebola ou como o menino da selva a quem dão a experimentar receitas novas, não apenas culinárias mas também, todas as outras. As gustativas e as restantes também.

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