Onde Lucrécia recorda a sua chegada a Hanói e a retemperadora sopa que então ali comeu e onde reflecte sobre como os pratos dos pobres acabam por se tornar o enlevo dos ricos

 

Foto extraída da net (as minhas já eram), sem indicação de autoria



     23h00, hora local. Desembarco em Hanói. Não faço ideia das horas em Portugal. Venho amassada do longo tempo de viagem, não sendo o calor e a humidade que me envolvem quando abandono o ambiente condicionado do aeroporto de Noi Bai que me vão devolver a frescura. Preciso de um banho e forrar o estômago com urgência. Estou quase a atirar-me ao chão e fazer uma birra como a da criança italiana que saiu do avião à minha frente, escoltada por dois progenitores desesperados perante olhar furibundo dos outros viajantes. Sim, sou esse tipo de viajante. Mesmo dando a volta ao mundo em busca de aventura mantenho a ilusão de que o dia me vai envolver em todas as comodidades do quotidiano e nenhum dos seus contratempos.

A noite de Hánoi corresponde exactamente ao que vi na televisão, nos programas de viagens. De algum modo, isso reconforta-me. Há muita gente na rua, trânsito como se estivéssemos em hora de ponta, as tradicionais motas com condutores sem capacete, tudo envolvido em tons de néon e luz branca. Reparo também em muitas pessoas, homens e mulheres sentados em banquinhos de plástico, a comer à porta do que suponho serão restaurantes locais. Não há estrelas Michelin à vista. Faço vagos planos de passar por lá à luz do dia para tirar umas fotos.

O táxi deposita-me à porta do hotel. Quando chego ao quarto, sinto-me satisfeita com a agência e desiludida comigo. Gostava de ser mais aventureira. Experimentar um quatro estrelas, por exemplo. Em vez disso, dou por mim numa suite igual a tantas outras onde estive já na minha vida. Uma cama espaçosa com lençóis alvos e perfumados e uma casa de banho com todas as comodidades da vida ocidental. Não podemos fugir de quem somos, essa é que é essa. Leio a lista do serviço de quartos. Àquela hora, as opções são poucas, a cozinha está a funcionar em piloto automático. Salada César (ah, os croutons!, a civilização em qualquer canto do mundo), Club Sandwich, hambúrguer com batatas fritas. Não há uma sopinha para aconchegar o estômago. Lembro-me da luta da minha mãe para eu comer sopa e agora tantos anos depois o que eu não dava por um caldo. Sobre a minha cruzada anti-sopa e sobre o gosto que hoje lhe voto, escreverei noutro dia. Se calhar. 

Uma ideia surge inopinada na minha mente. Procuro esmagá-la com todas as regras da prudência, mas não é possível. Com o entusiasmo de uma cascata de pipocas o espírito de aventura domina-me. Tomo o elevador, passo no lobby, saúdo com aparente familiaridade o porteiro que acabei de conhecer e provavelmente já me esqueceu. Atravesso uma e outra rua, reconstituindo o caminho do táxi, agora em sentido inverso.

Estou na rua por onde passei há cerca de uma hora, os restaurantes já mais calmos, mas ainda a funcionar. Muitos locais, o que deve ser bom sinal. Vejo um grupo de jovens turistas ocidentais e decido sentar-me perto. Observo a ementa plastificada colada na pequena mesa de verga, já muito estragada, que me calha em sorte. Há um vasto conjunto de sopas, todas com a mesma base e diferentes conteúdos, guiosas, pastéis salgados e pratos de arroz frito. Apesar do louvável trabalho do jesuíta beirão Francisco de Pina, que ocidentalizou os caracteres originais da língua vietnamita, só graças à sinalética simples consigo identificar a sopa que quero comer. Pho de legumes. Aponto para ela na ementa e peço uma cerveja. O empregado acena e não são precisas mais conversas. Esta interacção tão básica transporta-me ao pequeno restaurante na Rua do Benformoso, onde pela primeira vez comi esta sopa vietnamita. Uma ementa pequena (duas sopas e guiosas) são o suficiente para atrair mais e mais clientela.

Chega a minha sopa. Água a ferver, matando qualquer micróbio, rebentos de soja, massa, couve. Faço um bonito vertendo o picante e espremendo a lima, com à vontade. Mas o empregado não se impressiona. Já eu, estou impressionada com a singela refeição. O caldo fumegante devolve-me a energia. os rebentos de soja são frescos e formam um jogo de sabores inesperado com a couve chinesa. Levo um cogumelo à boca e sou agraciada com um sabor acre e doce, que nunca antes tinha experimentado. Pertence ao cogumelo shiitake stem, típico do Vietname. Observo os comensais à minha volta. Vou engolindo em pequenos goles a cerveja chinesa meia morna, o que, diga-se, não me causa particular contrariedade. Termino a minha primeira refeição em solo vietnamita e regresso ao hotel recomposta.

 A sopa pho é, talvez, a sopa de pedra do Vietname. Tal como na tradicional história portuguesa em que a pretexto do calhau um pedinte consegue que os donos da casa onde se hospeda lhe forneçam todos os mantimentos necessários para confecionar uma sopa rica (que antes lhe tinham negado), a pho leva todos os ingredientes que a imaginação e a bolsa consentirem. Por regra, tem na sua base um caldo de carne. Mas sendo o vegetarianismo muito comum na Ásia é fácil encontrar versões alternativas. os condimentos essenciais são o gengibre, o cardamomo e a canela. O manjericão tailandês, o broto de feijão e a pimenta moída são indispensáveis. 

É impossível comê-la sem estabelecer semelhanças com as sopas ramen de outros pontos do Oriente. Como a bruscheta ou o gaspacho, são refeições de pobres que chegaram à mesa de ricos, desmentindo a música de Rodrigo, sobre os coentros e rabanetes. Em versão original ou em modelos reinventados ou reconstruídos (o cúmulo do chique, como diriam Gungunhana e Cat) aquecem-nos a alma e dão-nos força para continuar o caminho. Quem as confecciona não é indicado para prémios gastronómicos. Mas ganha um lugar no coração daqueles a quem devolveu o ânimo num qualquer momento de fraqueza. Há lá coisa mais reconfortante do que duas fatias de pão alentejano regadas com água quente, temperada com azeite, sal, alho e coentros? Uma sopinha de alentejano de recursos limitados, mas paladar apurado. 

Com as forças restauradas, voltei ao hotel. Enfiei-me na cama e dormi de um só sono. No dia a seguir, nem calor, nem humidade, nem pequeno-almoço continental, me impediram de me perder pelas ruas de Hanói. Com GPS, claro. 

Sopa Pho em Lisboa: no restaurante Pho Pu, Rua do Benformoso, 76, of course. É melhor marcarem, digo eu. 

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