Onde Lucrécia recorda a sua chegada a Hanói e a retemperadora sopa que então ali comeu e onde reflecte sobre como os pratos dos pobres acabam por se tornar o enlevo dos ricos
![]() |
Foto extraída da net (as minhas já eram), sem indicação de autoria |
A
noite de Hánoi corresponde exactamente ao que vi na televisão, nos programas de
viagens. De algum modo, isso reconforta-me. Há muita gente na rua, trânsito
como se estivéssemos em hora de ponta, as tradicionais motas com condutores sem capacete, tudo envolvido em tons de néon e luz
branca. Reparo também em muitas pessoas, homens e mulheres sentados em
banquinhos de plástico, a comer à porta do que suponho serão restaurantes locais.
Não há estrelas Michelin à vista. Faço vagos planos de passar por lá à luz do
dia para tirar umas fotos.
O
táxi deposita-me à porta do hotel. Quando chego ao quarto, sinto-me satisfeita
com a agência e desiludida comigo. Gostava de ser mais aventureira. Experimentar
um quatro estrelas, por exemplo. Em vez disso, dou por mim numa suite igual a
tantas outras onde estive já na minha vida. Uma cama espaçosa com lençóis alvos
e perfumados e uma casa de banho com todas as comodidades da vida ocidental. Não
podemos fugir de quem somos, essa é que é essa. Leio a lista do serviço de quartos.
Àquela hora, as opções são poucas, a cozinha está a funcionar em piloto
automático. Salada César (ah, os croutons!,
a civilização em qualquer canto do mundo), Club Sandwich, hambúrguer com
batatas fritas. Não há uma sopinha para aconchegar o estômago. Lembro-me da
luta da minha mãe para eu comer sopa e agora tantos anos depois o que eu não
dava por um caldo. Sobre a minha cruzada anti-sopa e sobre o gosto que hoje lhe voto, escreverei noutro dia. Se calhar.
Uma
ideia surge inopinada na minha mente. Procuro esmagá-la com todas as regras da
prudência, mas não é possível. Com o entusiasmo de uma cascata de pipocas o
espírito de aventura domina-me. Tomo o elevador, passo no lobby, saúdo
com aparente familiaridade o porteiro que acabei de conhecer e provavelmente já
me esqueceu. Atravesso uma e outra rua, reconstituindo o caminho do táxi, agora
em sentido inverso.
Estou
na rua por onde passei há cerca de uma hora, os restaurantes já mais calmos,
mas ainda a funcionar. Muitos locais, o que deve ser bom sinal. Vejo um grupo
de jovens turistas ocidentais e decido sentar-me perto. Observo a ementa plastificada
colada na pequena mesa de verga, já muito estragada, que me calha em sorte. Há um vasto conjunto de
sopas, todas com a mesma base e diferentes conteúdos, guiosas, pastéis salgados e pratos de arroz frito. Apesar do louvável trabalho do jesuíta beirão
Francisco de Pina, que ocidentalizou os caracteres originais da língua
vietnamita, só graças à sinalética simples consigo identificar a sopa que quero
comer. Pho de legumes. Aponto para ela na ementa e peço uma cerveja. O empregado
acena e não são precisas mais conversas. Esta interacção tão básica
transporta-me ao pequeno restaurante na Rua do Benformoso, onde pela primeira
vez comi esta sopa vietnamita. Uma ementa pequena (duas sopas e guiosas) são o
suficiente para atrair mais e mais clientela.
Chega
a minha sopa. Água a ferver, matando qualquer micróbio, rebentos de soja, massa,
couve. Faço um bonito vertendo o picante e espremendo a lima, com à vontade.
Mas o empregado não se impressiona. Já eu, estou impressionada com a singela
refeição. O caldo fumegante devolve-me a energia. os rebentos de soja são frescos e formam um jogo de sabores inesperado com a couve chinesa. Levo um cogumelo à boca e sou agraciada com um sabor acre e doce, que nunca antes tinha experimentado. Pertence ao cogumelo shiitake stem, típico do Vietname. Observo os comensais à minha
volta. Vou engolindo em pequenos goles a cerveja chinesa meia morna, o que,
diga-se, não me causa particular contrariedade. Termino a minha primeira refeição
em solo vietnamita e regresso ao hotel recomposta.
A sopa pho é, talvez, a sopa de pedra do Vietname. Tal
como na tradicional história portuguesa em que a pretexto do calhau um pedinte
consegue que os donos da casa onde se hospeda lhe forneçam todos os mantimentos
necessários para confecionar uma sopa rica (que antes lhe tinham negado), a pho
leva todos os ingredientes que a imaginação e a bolsa consentirem. Por regra, tem na sua base um caldo de carne. Mas sendo o vegetarianismo muito comum na Ásia é fácil encontrar versões alternativas. os condimentos essenciais são o gengibre, o cardamomo e a canela. O manjericão tailandês, o broto de feijão e a pimenta moída são indispensáveis.
É impossível comê-la sem estabelecer semelhanças com as sopas ramen de outros pontos do Oriente. Como
a bruscheta ou o gaspacho, são refeições de pobres que chegaram à mesa de
ricos, desmentindo a música de Rodrigo, sobre os coentros e rabanetes. Em versão
original ou em modelos reinventados ou reconstruídos (o cúmulo do chique, como
diriam Gungunhana e Cat) aquecem-nos a alma e dão-nos força para continuar o caminho. Quem
as confecciona não é indicado para prémios gastronómicos. Mas ganha um
lugar no coração daqueles a quem devolveu o ânimo num qualquer momento de
fraqueza. Há lá coisa mais reconfortante do que duas fatias de pão alentejano regadas com água quente, temperada com azeite, sal, alho e coentros? Uma sopinha de alentejano de recursos limitados, mas paladar apurado.
Com as forças restauradas, voltei
ao hotel. Enfiei-me na cama e dormi de um só sono. No dia a seguir, nem calor, nem humidade, nem
pequeno-almoço continental, me impediram de me perder pelas ruas de Hanói. Com GPS,
claro.
Sopa
Pho em Lisboa: no restaurante Pho Pu, Rua do Benformoso, 76, of course. É melhor marcarem, digo eu.
Comentários
Enviar um comentário