Onde Lucrécia, inspirada em Boccaccio, parte para a planície alentejana, toma conhecimento da Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres e vai saborear os sabores do campo
Como as personagens do Decamaron, decidi refugiar-me no campo. Ao segundo Verão desta pandemia sigo o rumo traçado pelo poeta italiano, a melhor solução que encontrei apesar do lapso de tempo considerável entre a nossa situação e o grassar da peste negra pela Europa quatrocentista.
Imitação? Se a ideia é de Boccaccio não tenho preocupações de tal
natureza. Aliás, a pretensão de ser original é sobrestimada nos nossos dias.
Bom, decidi então ir para o campo. Ocorreu-me ir ocupar uma dacha na Crimeia,
resquícios dos tempos em que entretinha as tardes de ócio a ler A Vida
Soviética, uma publicação icónica dos tempos da URSS. Imaginei os campos
povoados de florzinhas coloridas e uma pequena casa de madeira escura com
vista para o mar, cortinas em tons alegres e decoração reduzida ao mínimo
indispensável para uns dias de descanso. Todavia, com a mesma eficácia atribuída ao martelo de Estaline a esmagar sonhos individuais, o meu agente de viagens cortou-me o sonho, ao informar-me
de que nesta altura do ano não há dachas disponíveis. Fiquei algo titubeante, é
certo. Este pequeno projecto estava já a tomar conta da minha imaginação nestes
penosos dias de Verão urbano. Mas não se é Lucrécia (mesmo que not quite
Bórgia) permitindo que pequenas adversidades nos toldem os planos. E assim,
melhor pensando, decidi instalar-me pelo
sul e lá rumei ao Alentejo.
Sim,
estava calor. E ainda bem, porque é o tempo dele. Além disso, a promessa de temperaturas muito quentes tem o mesmo efeito reconhecido à de tempos muito frios: afasta de nós os inconvenientes, pouco afeitos a domar o corpo em benefício das alegrias do espírito. Nestes dias de delícia
soube-me bem passear pelo castelo, visitar a Sé e percorrer os corredores do
convento onde está hoje instalado o museu regional da cidade. Nem sempre com
pensamentos edificantes, mas ao que sei quem por lá viveu sob ordem religiosa
também não primou em todas as ocasiões por ideias sem mácula. O local que me
tocou a alma, foi, contudo, outro: a Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres, com
os seus frescos inspirados no Evangelho de Maria pintados pelo grande António
Oliveira Pires). Uma igreja pequena, mas em que podemos ficar longo tempo maravilhando-nos
com as pinturas e com a audácia (e poder) de homens que em pleno século XVII
decidiram consagrar uma igreja aos prazeres espirituais de uma mulher, com base
num texto apócrifo.
Tédio,
está bem de ver, não senti. E fome também não, diga-se. Vozes amigas
desaconselharam-me o passeio a Beja preocupadas com a falta de opções para
comer. Acreditei que de quem sabe mais e melhor me seria enviada solução e de
que não sofreria de fome ou fastio em terras alentejanas. A minha fé, digna de
uma Mariana Alcoforado da gastronomia sustentável, teve melhor desfecho do que a
da célebre freira cujas cartas secretas foram reveladas ao mundo pelo seu
apaixonado uma vez regressado a terras gaulesas. À mesa desta Lucrécia, nem
traições, nem desilusões. Foi assim que guiada por Gungunhana (leram bem, o do
paladar sensível) o grupo excursionista onde me encontro entrou com apetite e
glória no restaurante Sabores do Campo. Opções não faltaram, todas de raiz
vegetariana. Por mim, os sempre entusiasmantes cogumelos, o nunca traidor grão
cozinhado com esse pequeno mimo que é o tomate seco agraciado com coentros, uma linda trouxa recheada
de vegetais, dando todo um novo brilho à por regra pouco imaginativa couve
branco-esverdeada. Todo um festival de cor na salada. No final, um doce de coco generoso, que não desonraria as
pasteleiras conventuais de outros tempos, coroado por uma pequena ameixa,
homenagem vegan à sericaia. Gungunhana poderá, querendo, falar da sua
experiência. Por mim, encontrei no coração do Alentejo aquele alento e conforto
que nestes dias negros todos procuramos para o corpo e para o espírito, entre garfadas e estórias aventurosas que as acompanharam. Lá voltarei que a ementa é vasta e a minha curiosidade também!
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