À chacun et chacune son pain que é como quem diz pão e bolos para todos!

 

Marie Antoinette, de Sophia Coppola

        Esta crónica começa com uma singela carcaça. Ou antes, com a busca por uma carcaça que não foi tão fácil de encontrar quanto isso. A ideia veio-me já há uns tempos à cabeça e tenho de vos dizer que apesar de estar então no centro de Lisboa não encontrei aquele tipo de pão. Nas padarias, pastelarias e supermercados onde rumei havia outros tipos de pão, diga-se desde já. Fatiado, inteiro, bolinhas de sementes, pão de milho, pão de cozedura lenta, bolinhas de abóbora e sementes, pão de mistura de cereais, brioches, pão de leite, pão de centeio, pão de trigo, de alfarroba, de alho, de queijo, com passas, com nozes, com passas e nozes, baguetes (incrível que exista pão de inspiração francesa em detrimento da ansiada carcaça portuguesíssima). Enfim, pão não faltava, o que faltava era o que eu em concreto queria. E quando nos falta o que desejamos vivemos em escassez mascarada de abundância. Pode haver tudo, mas é que se nada existisse. 

Um apetite por satisfazer é, como sabemos, um problema infindável. De onde veio este desejo não sei. Talvez da recordação das sandes que comia na praia em miúda. Bom, talvez comer seja um verbo algo finalístico para o longo processo de namoro entre mim e aquele pãozinho enorme (assim me parecia) cruelmente colocado entre a minha pessoa e a próxima ida às águas do mar. “Só sais dessa toalha para ir ao banho depois de comeres a carcaça!”. Palavras de cuidado com efeito dramático na criança que era um bocado um “pisco” para comer. Hoje em dia “pisco” só se for do Peru naquele maravilhoso restaurante em Lisboa de que conto falar-vos aqui em breve.

Houve um tempo em que encontrar carcaças em qualquer padaria de Lisboa era como apanhar uma molha num dia de chuva. Hoje, como pude sentir na pele, não é tarefa tão fácil. É que, como escrevem os especialistas na matéria, o pão é, não só uma questão política, mas também um assunto que, como o corte das calças ou a bainha dos vestidos, está sujeito a tendências. O pão claro, de que a carcaça é acabado, exemplo, ganhou terreno com a industrialização e muito assente na ideia de higiene na sua elaboração (era feito por máquinas e não pelas mãos de seres humanos cujos hábitos de limpeza eram questionados pelas classes mais elevadas). Contudo, apesar de ser vitaminado artificialmente, o seu valor nutritivo era bem mais baixo do que o do pão escuro. Hoje, como sabemos, há toda uma revistação do tema do pão, com nutricionistas, artesões e tutti quanti a tentarem criar regras sobre que tipo daquele devemos comer, em que quantidade e a que hora do dia.

Certo é que acabei por encontrar a desejada carcaça, numa das padarias que ainda resiste aos tempos de pós-modernidade que vivemos. Entrar naquela loja (que é the real thing e não uma loja decorado para fazer lembrar as padarias de outros tempos) foi uma espécie de regresso ao passado. Um espaço pequeno, em tons de branco, uma balança antiga e uma caixa registadora também de outros tempos. Alguns tipos de pães e no balcão de vidro que separa a vendedora (também ela já de outros tempos) um outro tesouro traduzido em quatro ou cinco categorias de bolinhos feitos, como me explicou, na mesma fábrica que lhe entrega os pães. Havia um outro tipo de bolacha, mas não trouxe, pois que a padeira disse-me que já estava dura (uma honestidade que não encontramos se não junto dos comerciantes old school). 



Vá-se lá saber porquê veio-me à cabeça Maria Antonieta e as grandes injustiças da vida. É bem sabido como a pobre terminou a sua passagem por este vale de lágrimas (como diria Camilo), com a cabecinha decepada pela guilhotina. Muito haveria a dizer sobre essa triste situação em que se encontra, mas considerado o tema que me ocupa (pão e bolos) há que clarificar que aquela frase "não têm pão como bolos" nunca foi dita pela Rainha ou, pelo menos, não há provas de tão descontraída afirmação. Toda a história parece ter origem nas páginas das Confissões de Rousseau (uma excelente leitura estival, apesar da tendência do autor para a autocomplacência). É Jean Jacques (ao fim de tantos anos sinto que posso adoptar uma certa informalidade de trato que não me permitiria, por exemplo, com um Diderot ou um Sainte-Beuve) que relata essa frase como tendo sido dita por uma grande princesa. Mas, não a identifica, sendo que pela idade de Maria Antonieta seria improvável que fosse ela. A atribuição de tal frase (que até não será maldosa, mas antes elucidativa do desconhecimento da vida das pessoas mais pobres por parte dos privilegiados) deve-se ao que tudo indica à máquina de propaganda dos revolucionários (fake news, fake news ...). Ainda assim, dá que pensar quando vemos os cartoons mais recentes juntando Antonieta e Macron e nos recordamos de que os coletes amarelos montaram uma guilhotina em Paris no meio das manifestações (ainda que também valha a pena lembrar-lhes como terminou Robespierre grande entusiasta daquela). 


Via Riposte Laique


Saboreei a minha carcaça com doce de figo e um longo café ao pequeno-almoço enquanto observo o laranjal que se estende à minha frente. E deliciei-me também com os coraçõezinhos com doce de morango e beijinhos de amêndoa e coco, claramente sem corantes, nem conservantes, mas antes com um sabor de inocência e de ternura. Um bocado como voltar à infância. Longe da multidão e de coletes de qualquer cor. 

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