Pequeno excurso sobre amoras, morangos e outras frutas fáceis agora que o Verão está plenamente instalado e em que se recorda também a maldosa Madame Fichini

 

Pedro Alexandrino Borges, MASP


       Aproveitando a pausa estival tenho estado a ler The Book of Difficult Fruit de Kate Lebo, autora norte-americana. Mistura de livro de receitas culinárias, recordações pessoais e história, o livro assenta na escolha de frutas que são difíceis por variadíssimas razões, seja pelo cheiro (como o durian de que falei já brevemente), seja pela dificuldade de descascar (como as romãs, esse exercício de paciência), seja por proporcionarem digestões custosas ou mesma a possibilidade de quem as ingere morrer envenenado (como diversas categorias de bagas silvestres).

É uma obra muito bem conseguida que me permitiu já confirmar a grande inteligência de Montaigne quando deixou escrito que as inclinações naturais, por serem as mais verdadeiras, são as que devemos seguir. A alguns agradam as frutas difíceis a mim encantam-me as fáceis. Enquanto leio os brilhantes ensaios que Lebo dedica a cada uma das frutas seleccionadas (uma por cada letra do alfabeto) dou por mim a recordar as frutas da minha vida. 

Ocorrem-me as amoras que apanhava na aldeia da minha avó. Como a do Capuchinho Vermelho, a minha avó morava perto de uma floresta cruzada por um rio. as semelhanças terminavam aí. A minha avó não só não se deixaria comer pelo Lobo Mau como, por certo, lhe daria que contar se o destino os cruzasse. Por isso, nunca tive problemas em ir brincar para o pé do rio e aí colher amoras quase negras de tão maduras, levando-as à boca às mãos cheias. “Cuidado que algumas são venenosas …” era um aviso que me ecoava nos ouvidos à saída de casa e também na consciência depois de as comer. Nunca soube realmente quais eram as perigosas. Como não estou a escrever esta crónica do além, suponho que isso verdadeiramente já não tenha qualquer importância. Os anos passaram e deixei de apanhar amoras. Como sucede com tantos adultos compro-as a outros que têm o trabalho de as ir colher. Se calhar se fosse fazer isso agora, adulta, colocaria as amoras entre as frutas difíceis, por causa das silvas que as guardam. Na vida, quase tudo é uma questão de perspectiva, na verdade. De cada vez que como amoras recordo-me apenas da criança que fui a correr para o rio que corre perto da aldeia. Sinto-lhes o doce, sem me lembrar de qualquer ferida nas mãos para lhes chegar. 

Outro prazer intacto é o dos morangos. Penso que não se pode ser infeliz a comer tal fruta. Da cor que nos chama à vida ao sabor doce que escorre à primeira dentada, é difícil imaginar coisa mais perfeita do que o morango perfeitamente maduro. Claro que existem muitas variedades de morango (aparentemente são como nós humanos e estão em todo o mundo, mas fazendo muito menos estrago). Podemos também conceder espaço a um pouco de civilização adicionando essa pequena maravilha que é o chantili. Quem inventou tal encanto não se sabe, pois se o infeliz François Vatel tem ficado com a fama parece que não existem provas documentais que efectivamente permitam atribuir-lhe o feito. Para quem hoje tem de decidir como comer os seus morangos (fosse tudo na vida tão fácil) isso não importa grandemente. Uma outra variação popular é o morango embebido em chocolate, para mim passaporte gustativo para me sentir no meio da praça central dessa pequena aldeia no meio da Europa que é Bruxelas, numa noite de inverno e em excelente companhia. E, no entanto, para mim a forma perfeita de comer morangos continua a ser any given day como dizem os ingleses ao natural. Pegar neles inteiros e tragá-los de uma dentada só, deixando o sumo invadir-me a boca e daí seguir-me pelas veias irrigando o meu coração de alegria. Não é só o gosto da fruta (e já é muito). Com ele, como com a madalena de Marcel, vem a recordação das tortas com doce de morango que não faltavam nas festas de aniversário em criança, o soufflé de morango da mãe ou o clássico gelado da minha infância. A travessa de morangos nas tardes de Verão depois da praia ou o bolo de aniversário carregado dos mesmos, tão bonito que até me deu uma certa pena comer. Mas o que tem de ser tem muita força!

Pedro Alexandrino Borges, Pinacoteca de São Paulo

Os pêssegos são outro tesouro que não deve ser esquecido. A mim recordam-me sempre As Meninas Exemplares e Os Desastres de Sofia da Condessa de Ségur. Talvez os pacientes leitores (as) consigam adivinhar o motivo. Foi nestes livros de infância que me apercebi que os pêssegos, como as uvas, eram considerados sobremesa. Ainda me lembro da cena em que as duas meninas ditas exemplares ficaram sem pêssegos, uvas e bolo de arroz (uma escolha com a qual ainda não me reconciliei) por uma qualquer tropelia que tinham, de forma surpreendente (atendendo à sua exemplaridade), levado a cabo. Na verdade, agora que penso nisso, parece-me que estavam inocentes, apenas quiseram proteger a pobre da Sofia que para além de ser privada de fruta, era batida com o chicote pela sua maldosa madrasta, madame Fichini (que acabará mal, como convém a quem açoita crianças).

E, naturalmente, não podem olvidar-se as ameixas, outra fruta fácil e às vezes desprezada. Haverá mais simples contentamento do que uma ameixa madura, seja ela amarela ou preta? Sem dificuldades de transporte no dia-a-dia, não precisa de ser descascada, não é demasiado grande, nem demasiado pequena e devolve-nos de uma assentada (ou melhor ainda, de uma dentada) a energia que deixámos lá em baixo e que temos de recuperar. Desde pequena que me habituei a trazer fruta para ir comendo ao longo da jornada. Isso tem incontáveis vantagens em termos de saúde e de economia de tempo quando estamos com o dito contado e não queremos comer porcaria. Contudo, talvez a maior e mais insuspeita vantagem, seja a da viagem emocional que cada peça de fruta nos proporciona, recompondo-nos o espírito como o corpo, trazendo-nos à memória sem esforço os momentos vividos e as pessoas que fizeram parte do nosso caminho.

Como disse no início do texto tenho queda natural para as frutas fáceis, As frutas difíceis são para mim como as pessoas complicadas. Muito interessantes nas páginas de livros, mas a evitar no dia-a-dia.


PS: Espero que gostem das naturezas mortas de Pedro Alexandrino Borges, pintor do país irmão. As naturezas mortas davam, só por si, um novo artigo (na verdade, todo um tratado). Mas o aspecto a reter é que estas todas feitas de elementos vegetais me parecem bem bonitas. Tenho de as ver ao vivo e a cores em São Paulo.

 

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