Lucrécia em Tormes ou A Cidade e as Serras versão veggie

Queirosiano que se preze tem de ir a Tormes ao menos uma vez na vida. É certo que a casa onde está a Fundação Eça de Queirós foi uma herança dos pais da esposa do escritor, os Condes de Resende. Contudo, não só é ali que está boa parte do espólio do autor de Os Maias (por exemplo, a sua secretária, o cadeirão de Jacinto, o armário com os seus ficheiros, numerosos bilhetes e fotografias pessoais, bem como os seus monóculos), como o local inspirou uma das suas mais deliciosas obras, A Cidade e as Serras, aventuras e desventuras de Zé Fernandes, português de boa cepa e de seu Príncipe, já acima nomeado. Para além disso, no local situa-se restaurante afamado, inspirado pelas letras do escritor, 

Não consta que Eça fosse vegetariano, mas ainda assim, decidi não só ir a Tormes, mas almoçar no restaurante com o mesmo nome mesmo ao lado da fundação, crente que o bom espírito do escritor não me falharia.

Tomei o comboio até ao Porto e daí um suburbano. A viagem, diga-se, é longa e a preocupação de não falhar o transbordo levou a que mal almoçasse. Sim, porque dificilmente se pode considerar uma sandes e umas tangerinas almoço digno de quem vai ao encontro do autor português que melhor descreveu os prazeres do estômago. De Os Maias a A Capital, passando por A Tragédia da Rua das Flores e A Relíquia, o que não falta são ceias no Hotel Central, idas a Sintra para, para além do mais, comer queijadas, lunches, chás e jantares. A Cidade e as Serras não é excepção, desde a ceia desastrosa no 202 dos Campos Elísios com o elevador entre a cozinha e sala de jantar a dar uma nota trágico-cómica a uma noite já algo entediante com uma discussão sobre roupa interior de duquesas até ao arroz de favas redentoramente saboreado em Tormes.

E foi também arroz de favas a minha escolha, algo estranha considerando que nunca apreciei particularmente as mesmas. Porém, tendo posto de lado o frango alourado por razões óbvias, pareceu-me que o arroz de favas feito de propósito para mim em Tormes (sim, estavam avisados da minha ida …) era a escolha sensata para prestar homenagem a Eça, devidamente acompanhado de uns peixinhos da horta, estaladiços, temperados com sal e limão, como gosto deles. Para entreter o estômago enquanto esperava nada como um pãozinho campestre com azeite da zona e um avanço simpático no vinho branco da casa. Chegados os peixinhos da horta e o arroz de favas senti que Eça estava a velar por mim. 



Aromático e delicioso na sua simplicidade, não ficou um bago de arroz para contar a história, nem um peixinho que tenha voltado para a horta. A conversa incidiu sobre Eça, claro. A sua ironia, a evolução da obra, as preocupações sociais que podem passar despercebidas a quem lê a sua obra ficcional, mas que são evidentes nos textos jornalísticos e na sua actividade profissional. Eça criticou aos ingleses o jugo lançado sobre os irlandeses, anteviu as consequências do antissemitismo na Alemanha e foi uma voz contra a escravatura, por exemplo.

Para sobremesa para além do surpreendente Creme de Água Queimado (em que aquela substitui o leite com bons resultados), recomenda-se uma laranja, grande e sumarenta, capaz de nos preparar para o empreendimento seguinte: o caminho de Jacinto, um longo passeio pelo campo que liga Tormes à Estação de Aregos.

 “Não há que enganar”, “é sempre a descer”, é o que vamos ouvindo dos locais sempre encorajadores e benevolentes para com os estranhos visitantes que querem refazer o percurso desse tal Jacinto. É a descer, mais fácil do que o de Jacinto ou o de Eça que lhe serviu de inspiração. Mas foi a pé e – no meu caso de saltos altos porque desconhecia a existência do caminho, pelo que não estava preparada - que o caminho foi feito. Certo que não tinha o calçado mais adequado, mas uma devota queirosiana não se deixa abater por tão pouco. Por isso lá fui, pé ante pé, mantendo o chique possível, pensando que se calhar o caminho podia estar melhor assinalado (o "sempre a direito" no campo não é tão evidente como numa auto-estrada, digo eu). Mas conseguimos.



       Entre parreiras douradas e árvores frondosas, inesperados pedaços de estrada e bonitas casas de pedra, embalada pelo silêncio e pelo sol de Outono. Lá regressámos à pequena estação de Aregos, outrora chamada Tormes. E diga-se que, em cada momento de dúvida e de alguma desesperança, aparecia um habitante local, a restaurar a esperança e o caminho certo. Era Eça, claro. A velar pelos seus. 

 

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