Comam pão!
Houve
um tempo em que comíamos para viver, sendo a primeira acção secundária face ao propósito
principal. Aliás, mesmo nos nossos dias há seguramente quem por todo o mundo
veja os alimentos por aquilo que eles são no essencial: uma forma de
garantirmos que temos a energia necessária a continuar por este nosso mundo. No
entanto, também me parece que desde muito cedo os seres humanos perceberam que
a comida tinha outras propriedades. Alguns alimentos agradam ao nosso paladar,
outros não. Há o doce, o salgado, azedo, amargo e umami. Há alimentos baratos e
simples de cozinhar e outros caros ou que impõem horas de trabalho na cozinha. Há
refeições ligeiras e banquetes compostos por diversos pratos. E tudo isto tem
feito parte da história humana.
Os
nossos tempos trouxeram algo novo: toda uma cultura em que o gosto pela
refeição se tornou uma experiência. Os chefs são estrelas, os melhores restaurantes
têm listas de espera às vezes de meses ou mesmo anos, os críticos gastronómicos
fazem e desfazem reputações, a indústria da comida vale rios de dinheiro. Não
vamos ao restaurante comer. Vamos experimentar, saborear, sentir, participar
numa espécie de experiência mística secular em que o grande sacerdote é o chefe
de sala e o deus está na cozinha a dar os últimos retoques numa qualquer descontrução
de arroz de tomate com bisou de brócolos e espuma de oceano índico ao
entardecer.
Julian
Slowik, a personagem do filme O Menu, faz parte deste mundo e não está nada
satisfeito com o rumo que ele leva. Pode mesmo dizer-se que está francamente
desesperançado. Slowik é o chef residente de um restaurante detido por um
magnata duvidoso. O seu estabelecimento comercial está localizado numa ilha
onde são também cultivados e preparados todos os produtos que utiliza na
cozinha. Ser seleccionado para jantar neste mega – hiper – exclusivo restaurante
não é para todas os palatos e sobretudo para todas as bolsas. E os convivas da
noite e espectadores do filme vão perceber bem o quanto esta é uma experiência
irrepetível.
O Menu é uma comédia negra que a partir de determinado momento entra num
registo non sense que pode tornar-se desconfortável para os espectadores mais
sensíveis. Não para esta vossa escriba, ainda aparentada (muito ao de leve, é
certo) com os Bórgia. O mesmo é dizer, dada a emoções fortes. Esses bons genes asseguram o sangue frio necessário para acompanhar imperturbável uma refeição mas turbulenta, sobretudo não estando sentada á mesa crítica.
No filme, ainda que de modo simbólico, são tocados os grandes temas da arte culinária nos nosso dias: processo de obtenção dos ingredientes, às condições de trabalho (não por acaso a relação de Slowik com os seus empregados parece emular a de um líder de uma seita religiosa com os seus crentes ou a de um general com as suas tropas), o estrelato dos cozinheiros, o preço obsceno das refeições, o poder dos críticos e a pretensão de alguns comensais que, nem sabendo estrelar um ovo, ousam questionar as escolhas dos supremos comandante da cozinha. A dimensão escatológica do filme é reforçada quando percebemos os critérios que estiveram subjacentes à escolha dos convivas para tão especial refeição. Mas todos os planos têm uma falha: aqui o cliente que topa o chefe à distância, claro. E a quem é permitido comer pão (e mais não digo para evitar spoilers).
Dei
por mim a pensar como Gungunhana, eu e Frida nos desenvencilharíamos de tão
inusitada situação. Estou crente que este pequeno blogue não iria depor contra
nós. Bem pelo contrário. Temos tudo para Slowik gostar de nós e muito
provavelmente deixar-nos levar os sobejos da refeição para casa (mesmo
Gungunhana conviria que esta era a melhor solução).
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